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Uma visão política assistencial da saúde mental e reflexões sobre a reconstrução do sujeito a partir da Abordagem Centrada na Pessoa.

Patrícia Moreira Bastos

*Texto escrito em 2000

Agradecemos a todos aqueles que aceitaram, acreditaram, e contribuíram direta e indiretamente , na construção de novas idéias para a reconstrução de um novo homem . [Mais...]

CONVITE AO ENCONTRO

( DIVISA)

Mais importante do que a ciência é o seu resultado ,
Uma resposta provoca uma centena de perguntas.
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
Um poema invoca uma centena de atos heróicos.
Mais importante do que o reconhecimento é o seu resultado,
O resultado é dor e culpa.
Mais importante do que a procriação é a criança,
Mais importante do que a evolução da criança , é a evolução do criador.
Em lugar de passos imperativos , o imperador.
Em lugar de passos criativos, o criador.
Um encontro de dois: olhos nos olhos , face a face.
E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus,
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus olhos;
Então ver-te-ei com os teus olhos
E tu ver-me-á com os meus olhos.
Assim , até a coisa comum serve o silencio
E nosso encontro permanece a meta sem cadeias ;
O lugar indeterminado , num tempo indeterminado,
A palavra indeterminada para o Homem indeterminado.

(Jacob L. Moreno)

INTRODUÇÃO

Historicamente, segundo prof. Afonso Fonseca (in GUSMÃO,1999,17) a Abordagem Centrada na Pessoa tem representado nas últimas décadas um importante marco referencial no estudo do comportamento humano , assim como da ação terapêutica nas relações do indivíduo , revelando a interação cada vez maior e mais significativa de áreas de saúde afins , interessadas no desenvolvimento do sentido do valor humano em uma abordagem humanista , sob um enfoque fenomenológico existencial.

No III Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na Pessoa , em Ouro Preto-MG/99, em um momento de elevada inspiração rogeriana, um grupo de ‘ terapeutas empáticos ‘ buscou desenvolver algumas reflexões sobre os indivíduos portadores de transtornos mentais , internados em instituições psiquiátricas, e a reorganização de seus padrões referenciais rompidos pelo sofrimento psíquico .

Então , sob o ponto de vista humanista , o que é saúde mental ? Quem é esse homem portador de transtornos mentais ?

Com base nos pressupostos rogerianos, como reconstruir a visão de homem ? Como avaliar os níveis de estagnação da expressividade humana , sem estar preso nas teias dos estigmas ?

Como facilitar a quebra dos ‘ grilhões ‘ das incongruências tão cristalizadas nestes sujeitos ?

Enfim , por onde começar para propor o resgate da autonomia de novamente tornar-se a ser ?

Estes mesmos ‘ terapeutas ‘ partiram para um grupo de interesse , no X Encontro Nordestino da Abordagem Centrada na Pessoa , Serrambi-PE/2000, visando compartilhar tantas dúvidas e propor parceria na descoberta de novas trilhas de entendimento , sobre este sujeito em conflito com o universo .

O resultado das discussões deste rico encontro foi a constatação de que pensar na ACP à partir de uma visão política assistencial na Saúde Mental , é uma idéia , como diria prof. Afonso Fonseca, “satisfatoriamente ousada “, entretanto , que acaba levando a uma outra questão : o aspecto existencialista do poder no contexto institucional e a ACP.

Segundo prof. Afonso Fonseca, a ACP responde muito bem em termos da relação pessoa a pessoa , porém existe nela uma lacuna grave a respeito da reflexão sobre a instituição , talvez na reflexão sobre o poder institucional e pessoal , comentado por Rogers de forma bastante genérica . A Abordagem Centrada na Pessoa parece ser precária na reflexão sobre o papel do ” ser terapeuta ” enquanto instituição – fala-se mais no terapeuta enquanto pessoa , apesar do ser terapeuta também representar ” ser instituição “.

Um outro aspecto citado, é a ausência de uma reflexão sobre a cultura , considerada também uma lacuna na ACP, principalmente quando se pode pensar nos fenômenos culturais, p.ex. no que diz respeito aos vínculos nos psicóticos ou no sujeito atípico como ser cultural.

Que cultural é esse , quando o sujeito funciona não conceitualmente, mas rompendo com todos os padrões consensuais e potenciais com a cultura , rompendo com a linguagem ?

Independente de qualquer posição , segundo ainda prof. Afonso Fonseca, a ACP é aplicável na reflexão institucional, mas não se pode deixar de considerar a existência de sua fragilidade neste contexto : muitas vezes fica-se perdido num oceano de teorias sem a contextualização institucional. Daí surgir a necessidade de se pensar sobre as lacunas existentes na ACP relativas aos aspectos institucional e cultural que podem certamente proporcionar um maior entendimento do processo fenomenológico existencial da abordagem e sua ampliação teórico-prática no contexto da Saúde Mental .

Num hospital psiquiátrico , pode-se verificar uma cultura profunda estruturada p. ex., você quer se relacionar com paciente enquanto pessoa , mas você não é visto como pessoa por ele , pois você é um agente institucional; e, como é que fica isso ? Se um terapeuta de consultório é considerado um agente institucional, em um hospital psiquiátrico , não restam dúvidas quanto ao seu papel institucional.

A superação da condição institucional parece ser possível , na medida em que ao se fazer reconhecer a dimensão institucional, buscar afastar-se um pouco do referencial da ACP para uma outra direção ; os psiquiatras ingleses existencialistas Ronald Laing e David Cooper, trabalharam bastante próximos da Abordagem Centrada na Pessoa , sob o enfoque fenomenológico existencial, porém envolvendo em maior escala a questão do ” paciente psiquiátrico “, enquanto outros , como Basaglia, Rotelli, Goffman, Michel Foucault e Alfredo Monfat, centraram seus trabalhos na questão institucional.

Nesta perspectiva , é possível obter o insight da questão institucional, visto à partir de uma visão fenomenológica existencial na ACP, estabelecendo uma ponte com a dimensão institucional, seja psiquiátrica ou não , como forma de superar a relação limitada da ACP da pessoa como pessoa , e só pessoa .

Paralelo à reflexão institucional e sua contextualização teórica , existe a possibilidade de facilitar ao paciente psiquiátrico alguns princípios rogerianos como : tendência atualizante, congruência e auto-aceitação para possibilitá-lo na (re) aquisição de sua identidade e potencialidades. E com estes indicadores de autonomia será possível verificar as variáveis que interagem em todo o processo terapêutico.

Portanto , segundo prof. Afonso Fonseca, toda a bagagem teórica que se possa construir quanto a questão institucional na ACP e o crescimento do indivíduo a partir da aplicação de seus fundamentos , poderão representar uma melhor maneira de abordar um paciente psiquiátrico como pessoa e/ ou como relação humana .

DESCENTRANDO PARA CENTRAR NA PESSOA

Não se pretende no momento , falar sobre a pessoa do terapeuta , nem daquele que pode ou consegue procurar espontaneamente ajuda .

Na verdade , tenta-se pensar no sujeito que perdeu seu potencial atualizante (de expressão ) ou encontra-se com sua capacidade de auto-regulação comprometida ou fragmentada; para tanto , visa-se basear-se nos princípios da ACP projetados, e realmente centrados, na pessoa portadora de transtornos mentais e/ ou sofrimentos psíquicos .

Neste aspecto , propõe-se, seguindo as condições satisfatórias para o processo terapêutico citado por Rogers, identificar e facilitar adequações às necessidades do sujeito considerado ” alienado “, despojado de vontade , rotina , cotidiano e possibilidades de escolhas .

O que é Saúde Mental ? O que é ter saúde mental ?

No contexto da Saúde Mental lida-se, freqüentemente com termos como ” doença mental “, ” loucura “, ” desajustes emocionais “, ” transtornos e sofrimentos”, etc. para os quais encontra-se inserido o homem .

É importante observar que no momento em que o indivíduo perde sua percepção de unidade do Eu , no momento em que seu eu encontra-se descontrolavelmente fragmentado, se submete, vive um sofrimento tal , principalmente em razão de deixar de lado , de perder , a possibilidade de criar , de produzir , de ser útil, enfim , de apenas ser . Conforme BRUNELLO (1988,03) “… pode-se verificar que pouca atenção é dada para o conhecimento do modo como o paciente e sua comunidade vivem dia-a-dia , seus costumes e valores . Se acreditamos que a doença mental é uma ‘ doença do viver ‘, segundo Thomaz Szazz, como é possível compreender o paciente na sua totalidade se não considerarmos como fundamental o conhecimento do que o indivíduo tem de mais profundo e vivo dentro dele: a sua cultura ?”

É exatamente à partir deste aspecto , que a situação se agrava , é quando o indivíduo se dá conta da sua integridade enquanto ” ser “, em todas as dimensões , ser ameaçada à estagnação. FIGUEIREDO (1997,132) cita que ” não deixa de ser suspeito que o indivíduo se descubra como dono inalienável de um tesouro – que é sua própria vida – no momento que sua produção , seu consumo , seu trabalho , seu lazer , seus motivos e suas emoções são medidos, previstos e programados de forma a se integrar docilmente à dinâmica da cultura das massas .”

Segundo FONSECA FILHO (1980), para Rogers, destacando as idéias buberianas, todo processo terapêutico é considerado como um encontro , uma ” terapia do relacionamento”. Acrescenta citando Buber, “… que a relação Eu-Tu é uma realidade ontológica que não pode ser reduzida ao que acontece em somente um dos membros do relacionamento.”(1980,27) Porém , entende que , ainda para Buber a relação Eu-Tu , entre terapeuta e cliente nunca estaria em níveis iguais na situação real , aliás uma “… relação (…) muito mais num sentido do que em ambos (…) Concorda, porém que possa ser um profundo diálogo existencial.”(1980,30)

Conforme ainda o estilo buberiano, o homem só poderia ter consciência ou garantia de sua individualidade e singularidade no mundo à partir do encontro , da interação , ou da relação Eu-Tu. E neste aspecto , a condição de receptividade, de abertura , para o encontro , enfim , da relação , é que constituiria o homem enquanto integridade existencial. Sem essa relação , o homem não se reconhece a si próprio , divide seu Eu , distanciando-se do Tu , estabelecendo uma grande cisão na sua capacidade de sentir e de ser no mundo com o Outro .

“O sentido de identidade exige

a existência do outro por quem a pessoa é conhecida .”

(LAING,1987,153)

Sabe-se que o desajuste emocional vivenciado por um indivíduo , pode levá-lo freqüentemente ao desequilíbrio social , o que vem representar a descontinuidade de sua condição de produção – quem não consegue corresponder às normas (institucionais) estabelecidas, é a estigmatização de uma participação não mais ativa para o sistema produtivo .

É esse indivíduo “excluído” das condições (institucionais) de produção estabelecidas, quem “perde” seu poder de escolher e decidir , forçado a atribuir , a entregar para terceiros , sua autonomia sobre si ; fadado a não poder ( ser ) e a não merecer desejar , sonhar , querer , não precisa pensar , muito menos sentir , e mais longe estão ainda suas condições de exercer os papéis de autor e ator de sua própria história e do mundo .

Para MAY (1998) três problemas desintegram o homem moderno : a sensação de vazio , a solidão , e a ansiedade , os quais apresentam por sua vez três raízes: a transição dos valores sociais , a dicotomização da visão / valor de homem , e a ineficácia da linguagem .

O ser humano precisa viver em um processo contínuo de renovação num sentido dinâmico : sua busca é sempre desenvolver-se, melhorar, crescer . Na medida em que vivencia com freqüência a ” (…) idéia de incapacidade para fazer algo de eficaz a respeito da própria vida e do mundo em que vivemos.”(MAY,1998,22) surge o ‘ vácuo interior ‘ resultante da falta de sentido de suas potencialidades.

É exatamente à partir deste vazio , onde se depara com as indecisões e as incertezas , enfim , com a percepção da incapacidade e ineficácia da sua autonomia , que o homem busca relacionar-se com o outro ( ou outros !!!) visando com este intercâmbio , adquirir , segundo MAY (1998,25) “(…) autoconsciência, base de sua capacidade para orientar-se na vida .”, o que consequentemente o distanciaria da solidão , já que de forma geral , ” Todo ser humano adquire grande parte do senso de sua própria realidade pelo que os outros dizem e pensam ao seu respeito .” (MAY,1998,28)

Segundo MARTIN (1984,11) a concepção moreniana de homem apresenta ” dupla dimensão individual e relacional”; no aspecto individual ” seu núcleo antropológico é a espontaneidade “, o que para Rogers representaria a tendência para atualizar-se ou a auto regulação, considerando a espontaneidade a essência , a fonte singular do homem que facilitaria sua interação com o outro .

O homem é um ser inacabado e imperfeito , por isso sua adaptação às contradições pode causar-lhe sofrimento, ” não é completamente condicionado e determinado ; ele mesmo determina se cede aos condicionantes ou se lhes resiste (…) Ele não simplesmente existe, mas sempre decide qual será a sua existência ., o que ele se tornará no momento seguinte (…) o ser humano é capaz de mudar o mundo para melhor , se possível , e de mudar a si mesmo para melhor , se necessário .”(FRANKL,1991,112)

De que maneira então , pode-se acompanhar a dinâmica de comportamento , sentimentos e relações de uma pessoa “descontextualizada” e “despersonalizada”?

A REALIDADE ( POSSÍVEL ) DO INDIVÍDUO INTERNADO

UMA ESPÉCIE DE ” ESTUFA PARA MUDAR PESSOAS “(*)

OU UMA FORMA DE ” LAR PROTEGIDO”

DA CAPACIDADE DE TORNAR-SE A SER ?

(* GOFFMAN,1974,22)

A instituição psiquiátrica é um estabelecimento dirigido à assistência de pessoas tidas como dependentes , sem responsabilidades por si mesmas e que são vistas ( ainda !!!) como grande ameaça à comunidade , apesar de ‘ não intencional ‘.

Para GOFFMAN (1974), a ” instituição total ” representa um espaço com características residencial e de trabalho , onde um contingente significativo de pessoas , em condições similares , “separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo , levam uma vida fechada e formalmente administrada”(11). Toda instituição domina uma certa parcela do tempo , interesse e vontade de seus ” internos “, desvendando suas tendências de ” fechamento “. O termo ” total ” representaria nesta perspectiva , o estabelecimento de barreiras relativas ao aspecto social com o contexto externo .

O controle das necessidades e/ ou expressões humanas pelas instituições totais é apresentado por Goffman como um fator básico , indicativo do poder de autoridade e vigilância , para que haja o cumprimento das tarefas pré-determinadas, para atender aos objetivos oficiais da instituição , “…incapacitação, intimidação e reforma.”(GOFFMAN,1974,77)

Nas instituições totais observa-se comumente dois grupos , um sob controle caracterizado pelo grupo de internados, e outro pelo grupo da equipe técnica , ou de ” terapeutas “. O primeiro grupo , vive na instituição , com acesso reduzido ao contexto externo (1a mutilação do eu ); o segundo grupo trabalha muitas vezes em regime de escala de plantão ou sistema de carga horária ( obrigatória ), livremente integrado ao mundo exterior .

Freqüentemente , a instituição preocupa-se com a reabilitação , ou seja, com o “(…) restabelecimento dos mecanismos auto-reguladores do internado(…)”(GOFFMAN,1074,67); entretanto , o que na verdade acontece é que após a sua liberação , o internado nem sempre corresponde ao desejado pela equipe dirigente , pois o retorno à sociedade é acompanhado de sentimentos de angústia , resultado da vivência de um determinado modelo de conduta e “(…) totalmente exilado da vida .”(GOFFMAN,1974,64)

Nesta perspectiva , o internado atribui à instituição total , as suas responsabilidades (das quais se libertou!?) em razão da desculturação e suas conseqüências no âmbito da sociedade , e o estigma .

O termo estigma , é estabelecido pelo censo comum para a inclusão depreciativa de determinados atributos , caracterizando uma ” identidade social “, na redução da capacidade e potencialidades de um indivíduo a uma categoria de estereotipo indesejável . Portanto , “o termo estigma , será usado em referencia a um atributo (…) mas o que é preciso na realidade , é uma linguagem de relações e não de atributos .”; um traço que rotula, que marca profundamente alguém pode representar um indicativo de “normalidade de outrem , portanto ele não é em si mesmo , nem honroso nem desonroso ,”(GOFFMAN,1982,13)

Como o funcionamento de uma instituição total é similar a do Estado , pode-se então constatar a presença significativa de conflitos de relações e de status , entre os internados, em razão dos padrões humanos mantidos nas interações institucionais.

“(…) para estabelecer uma relação com um indivíduo ,

é necessário considerá-lo independentemente daquilo que

pode ser o rótulo que o define.”(BASAGLIA,1985,28)

Basaglia inclui no que denomina de ” instituição da violência “, os espaços destinados ao tratamento psiquiátrico , onde se observa o estabelecimento de papéis e funções , através da condição de produção do trabalho . Na verdade , este quadro parece refletir exatamente , as relações de poder “(…) a violência exercida por aqueles que empunham a faca contra os que se encontram sob sua lamina.” (BASAGLIA,1985,101) que traduzem o uso da violência como instrumento de controle do objeto-doença ( sujeito ) e a exclusão de todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente no sistema .

Segundo Basaglia, as instituições têm seus mecanismos próprios para camuflar suas contradições reduzindo os atritos , multiplicando resistências , solucionando conflitos provocados, para manter ou perpetuar sua condição de poder . Então , a instituição “Existia para problematizar o problema do enfermo , para o qual a única identificação era a estrutura hospitalar , feita para destruí-lo. Desta maneira o internado era obrigado a participar daquele único objetivo , colaborando ele próprio para a sua total desumanização.” (BASAGLIA,1985,279)

Nesta perspectiva , sua ação terapeutico-educativa visa ajustar o indivíduo a assumir o papel de ” objeto de violência ” como única e possível condição de sua realidade ; nessa inter-relação , observa-se o envolvimento simultâneo do ‘ paciente ‘ com sua doença , o terapeuta e via este último , a sociedade . A sociedade , por sua vez , informa os instrumentos para classificar os indivíduos , “o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma (…) categorias .” (GOFFMAN,1982,11)

A relação entre o indivíduo doente e a sociedade ( leia-se também instituição ), é então identificada como similar , ou muito próxima da relação do terapeuta e o ‘ paciente ‘, na medida em que se constata a postura conivente do terapeuta , o significado real de sua intervenção como reflexo das imposições institucionais, e o papel de ajustador de pessoas doentes na condição de ‘ objeto de violência ‘.

Percebe-se que mesmo despido das indumentárias institucionais, a pessoa doente é mantida enquanto “(…) objeto de uma violência que a sociedade exerceu sobre ele e que continua exercer , uma medida em que , antes de ser um doente mental , ele é um homem sem poder social , econômico ou contratual: é uma mera presença negativa , forçada a ser problemática e contraditória com o objetivo de mascarar o caráter contraditório de nossa sociedade .”(BASAGLIA,1985,113)

Estabelecendo-se uma linha de identificação entre a pessoa que está doente e a instituição , configura-se nesta relação o papel de passivo e de aceitação do controle do primeiro , como uma situação de significado único e estático . A inter-relação institucional, entretanto , enquanto vivência , parece estar fundamentada na negação de valores para o internado, caracterizado como “(…) irreversível objetivado pela doença , o que justifica, no plano prático-institucional, a relação subjetivante com ele instaurada.”(BASAGLIA,1985,274)

Acompanhando Foucault, na análise histórica do surgimento do hospital , no papel de agente terapêutico , pode-se observar que seu início se caracteriza com o acolhimento de pessoas pobres – dever social de proteção à sociedade , então , no lugar do meio de cura , um “morredouro”. O papel de interventor do hospital sobre a doença começa a tomar forma , ainda com base na ordem social , com a aplicação de mecanismos de controle ( ou ‘ disciplina ‘) de contaminação intra e extra-hospitalar.

Neste aspecto , Foucault define “A disciplina é uma técnica de exercício de poder (…)” (1986,105) que mesmo aperfeiçoando-se tecnologicamente tem o poder de vigília permanente nos indivíduos .

O hospital , no final do século XVIII passa a ser considerado uma instituição terapêutica e de cura , com a identificação do indivíduo doente sob sua responsabilidade , situação na qual o indivíduo assume um novo papel , o de ” objeto do saber e da prática “.

Reportando-se a questão da ‘ loucura ‘, que antes do século XVIII ” era essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão ” (FOUCAULT,1986,120), somente no começo do século XIX, tem-se registro do uso de internamento para diagnóstico e terapêutica da ‘ loucura ‘, então tida como ” desordem na maneira de agir , de querer , de sentir paixões , de tomar decisões e de ser livre .” (FOUCAULT,1986,121)

Segundo Foucault, é exatamente à partir desta perspectiva , que a instituição é reconhecida como um espaço de confronto , que produzirá “(…) dois efeitos : a vontade do doente , que podia (…) permanecer inatingível …” revelando sua desordem pela resistência à vontade institucional, e, “(…) a luta que à partir daí se instala (…) conduzir a vontade reta (…) perturbada à submissão e à renúncia.” (FOUCAULT,1986,122)

Mais uma vez , parece ficar cada vez mais clara a relação de poder como fator determinante da interação do homem doente e sua ‘ vontade de ser ‘ ; ao mesmo tempo que a instituição tem em seu saber uma verdade ( conhecimento e produção da doença ), pode submeter esta relação “(…) pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente (…) (FOUCAULT,1986,122) , neutralizando qualquer interferência , interna ou externa , que ameace ou coloque em risco seus mecanismos institucionais de controle .

É desta forma portanto , segundo Foucault, que “as relações de poder (…) condicionavam o funcionamento da instituição asilar , aí distribuíam as relações entre os indivíduos (…)(1986,127)

“a saúde mental está baseada em certo grau de tensão ,

tensão entre aquilo que já se alcançou e aquilo que ainda se deveria alcançar ,

ou o hiato entre o que se é e o que se deveria vir a ser .”

(FRANKL,1991,96)

Por outro lado , ao referir-se quanto ao sofrimento psíquico vivido pelo indivíduo sob diversas circunstancias, num contexto hospitalar , pode-se eleger nas relações existentes entre as condições e ambientes de trabalho , e a ” emergência de sintomas ou doença mental “(PITTA,1991,15), o ponto frágil de convergência entre diversas categorias profissionais , a tecnologia , e os usuários com os seus processos de doença .

Neste aspecto , o impacto com a impotência frente a própria dor , o sofrimento e a morte , resulta na negação em forma de poder , através de instrumentos institucionais, o que equivale a dizer que ao indivíduo doente é cerceado a capacidade de refletir , observar , decidir , e, da responsabilidade de si .

A condição de doente representa sob o ponto de vista social , a perda da potencialidade de produzir , “e, portanto , de ser ” (PITTA,1991,37); não produzindo, o estigma reflete um indivíduo desacreditado, sem direitos , identificado como alguém que “(…) não seja completamente humano (…).”(GOFFMAN,1982,15)

Historicamente a loucura surge enquanto algo fantástico , sobrenatural , onde atitudes míticas poderiam explicar e/ ou intervir em suas manifestações , ou como resultado do descumprimento de normas e/ ou revelações divinas. Posteriormente , passa a representar o que é oposto à razão humana , o que foi associado diretamente à exclusão . E, à partir de pensamentos inovadores , a “desrazão humana ” (PITTA,1991,81) ganha uma nova importância- objeto da ciência .

PERCORRENDO AS TRILHAS DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL

Segundo Laing, o ser humano pode ser visto à partir de diversos ângulos , e ” em fenomenologia existencial, a existência em questão pode ser a nossa , ou a do outro . Quando o outro é um paciente , a fenomenologia existencial torna-se uma tentativa de reconstruir sua maneira de ver-se a si mesmo em seu mundo , embora no relacionamento terapêutico o enfoque esteja na maneira de ser do paciente em relação a mim .” (LAING,1987,24)

É possível verificar-se então , que a leitura fenomenológica existencial pode ter um indicativo do modo como o terapeuta sente e age, determinando a forma de ser do paciente . E Rogers registra o momento de compreensão relativo ao ‘ movimento do indivíduo ‘, enquanto algo significativamente contínuo , um processo dialético, “(…) a vida , no que tem de melhor , é um processo que flui, que se altera e onde nada está fixado.”(ROGERS,1990,38)

Neste aspecto , segundo Figueiredo “A fenomenologia da existência (…) humana descobre que o homem é um ser que não tem essência alguma pré-definida. A existência é o modo de ser de quem projeta e realiza seu destino , indissociavelmente vinculado a uma situação , mas transcedendo-a num impulso incessante para a frente , para o futuro , para o nada , para a morte (…). A compreensão do indivíduo – são ou ‘ doente ‘,- implica na reconstrução do seu mundo , na explicitação dos horizontes implícitos que conferem sentidos a seus atos e vivências conscientes , no desvelamento do projeto existencial que subjaz a todas as suas ações .”(FIGUEIREDO,1997,37). Entendendo-se então que sendo toda consciência , sempre consciência de alguma coisa , e a reflexão sobre a intencionalidade embutida nesta consciência expressa a formalização do conteúdo de seus objetos , é possível estabelecer parâmetros , explicar , enfim traçar as diferentes formas de interação do homem com o ( seu ) mundo .

Para TAMBARA (1999,51) a abordagem centrada percebe o indivíduo em sofrimento psíquico , enquanto personagens de ” expressões ” distorcidas de uma tendência positiva e construtiva que não obteve as condições necessárias para realizar sua função de crescimento , auto realização e socialização. É entender que neste indivíduo , a capacidade de expressar e/ ou buscar condições de sobrevivência e desenvolvimento de potencialidades, encontra-se comprometida, como conseqüência de aspectos conflituosos e de desajustes em sua forma de viver .

O homem é livre para tornar-se a ” ser “; a retomada de seus papéis de autor e ator de sua própria história , insere-o em seu meio sócio-histórico-cultural, já que o campo fenomenológico de vida precisa “alimentar-se” adequadamente de inter-relações , para uma consciência crítica e de auto realização plenas.

“A ‘ vida plena ‘ é um processo , não um estado de ser .

É uma direção , não um destino .”

(ROGERS,1990,166)

Para Rogers (1990), o caminho representado pela ‘ vida plena ‘ é resultado do livre arbítrio pelo indivíduo , na condição única de liberdade psicológica para deslocar-se em qualquer direção .

Conforme alguns autores existencialistas , e, com base em Justo , “(…) o princípio norteador da pedagogia rogeriana seria o fato que não se pode ensinar diretamente às pessoas , mas tão somente facilitar-lhes a aprendizagem.”(in GOBBI,1998,27)

Interagindo informações relativas à liberdade de deslocamento e a facilitação pedagógica , May sugere que “(…) quem se encontra à beira da psicose experimenta muitas vezes uma urgente necessidade de procurar contato com os outros seres humanos . É uma reação sadia , pois esse relacionamento constitui uma ponte para a realidade .”(MAY,1998,28)

Entretanto , como ensinar a ” vida plena ” referida por Rogers para alguém que perdeu seu potencial atualizante? É possível dizer a alguém , carente do saber sentir-se, como é o gosto de um sorvete de chocolate ?

E se, com tanta compreensão e aceitação incondicional , na facilitação do crescimento do outro , perceber-se que na verdade , a utilização de recursos internos latentes , estaria limitando a experiência de sua sensibilidade , assim como a possibilidade do ( poder ) sentir a si próprio ?

CONCLUSÃO

Atualmente , e de diversas formas , observa-se que em suas relações o homem moderno vem interagindo de modo pouco afetiva e com baixo teor de ( ou falsa ?) gratificação , tornando-se, possível e passivamente , um ser autômato ; o fato é que esta interação vem refletindo no baixo nível de prazer vivenciado com tudo aquilo que se pode criar e/ ou produzir , em suas relações sócio-culturais e de trabalho . Por outro lado , conviver com diferenças e contradições , é (re) aprender a construir-se e de forma contínua , novas respostas às situações antigas e/ ou respostas às situações novas , ajustando-se e re-significando o sentido em sua vida .

Neste ponto de vista , Gusmão esclarece que somente “(…) à partir do momento em que o homem é capaz de enfrentar as contradições que existem dentro dele, se instala o seu processo de conscientização e de mudança; se instala nele, com mais agudeza , essas contradições – e a insatisfação e a necessidade de mudança pessoal e social ganham força.”(GUSMÃO,1999,37)

O indivíduo tem em si ( mesmo que adormecido) potencial , recursos e toda uma gama de informações e mecanismos para realizar o seu desenvolvimento enquanto ser . Daí, ser considerado o mais capacitado para controlar e propor as mudanças de sentimentos e comportamentos na sua própria vida .

Retomando então o indivíduo portador de transtornos mentais , internado em hospital psiquiátrico , aquele com seu potencial crítico de ser e da vontade limitados, como lidar com o princípio de autoridade na sua condição de autonomia e responsabilidade ?

Como enfrentar as condições institucionais estabelecidas na relação da liberdade de ser e a negação de valores para garantir os mecanismos de controle e camuflagem de distorções ?

Como lidar com a impotência para controlar dor e sofrimento, sem contaminar-se com a tendência (institucional) de negar e moldar o outro à partir de modelos do saber-poder?

Com a capacidade de expressar sentimentos empobrecida ou quase nula , e apresentando uma postura de ser fragilizada e/ ou fragmentada, como facilitar a aprendizagem para a auto consciência em tornar-se pessoa ?

Enfim , como construir , através da Abordagem Centrada na Pessoa , a trilha facilitadora da identificação da existência do poder ( inerente ) do indivíduo , para dominar suas propostas de mudanças relativas a auto-imagem, auto consciência e vontade da auto realização num contexto institucional?

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

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Uma reflexão acerca da consistência teórica das psicoterapias humanistas.

Georges Daniel Janja Bloc Boris

*Texto publicado na Revista de Psicologia, Fortaleza, 5 (1): pág. 69 a 75, Jan/Jun, 1987.

Resumo

O trabalho trata da falta de consistência teórica das psicoterapias humanistas. [Mais...] Expõe conceitos do filósofo Martin Buber: atitudes Eu-Tu e Eu-Isso, diálogo e encontro. Refere-se às repercussões destes conceitos sobre as psicoterapias humanistas, mais especificamente a exacerbação dos aspectos vivenciais e o conseqüente empobrecimento teórico destas abordagens. Propõe uma retomada do estudo da fenomenologia e do existencialismo à luz de Edmund Husserl, Maurice Merleau Ponty e Martin Buber.

ABSTRACT

A Reflection about Theoretical Consistency of Humanistic sychotherapy

The work is about the lack of theoretical consistence of the humanistic psychotherapies. It exposes the philosopher Martin Buber’s concepts: Thou and I It attitudes (Buber, 1965), dialogue and encounter. The work also refers to these concepts repercussions, more especially the exacerbation of the experiencial aspects and the consequent theoretical impoverishment of these approaches. It proposes a retaking of the study of phenomenology and existencialism in the light of Edmund Husserl, Maurice Merleau Ponty and Martin Buber.

O objetivo deste trabalho consiste em contribuir com uma reflexão a respeito de algumas argumentações freqüentemente feitas contra as psicoterapias humanistas no que se refere a uma possível falta de consistência teórica e científica, atribuindo-Ihes como metodologia simplesmente a subjetividade e a intuição.

Sendo psicoterapeuta já há alguns anos, tenho me perguntado acerca destas questões. Ate onde estas críticas são válidas? Em que medida as próprias abordagens humanistas têm contribuído para com a falácia sobre sua acientificidade? O que é e como deve ser a relação psicoterápica nestas abordagens? São estas algumas das questões que se pretendem tratar aqui.

Mais recentemente, no exercício do magistério superior, ao abordar questões relativas à fenomenologia, ao existencialismo a ao humanismo, venho travando contato com o pensamento marcante de Martin Buber, que parece iluminar com suas idéias as colocações que se seguirão.

Após uma breve apresentação de dados gerais sobre o pensamento de Buber, são expostas suas principais contribuições, especialmente aquelas que se servem à psicoterapia. Seguem-se considerações acerca das prováveis repercussões sobre as psicoterapias humanistas, basicamente a cisão encontro x teorização e, finalmente, algumas propostas de solução no sentido da consistência técnica para a realização da psicoterapia.

1. AS ATITUDES BÁSICAS DO SER HUMANO

A obra de Buber é marcada essencialmente pela busca do sentido da existência humana, visando ao resgate da sua responsabilidade pela construção de um mundo mais condizente com este sentido humano. Buber baseia suas indagações no diálogo, considerado por ele como a categoria existencial por excelência, propondo a compreensão da realidade humana através do prisma do dialógico, ou seja, do vínculo entre a experiência vivida (ação) e a reflexão (pensamento). Suas reflexões partem, portanto, das experiências vividas, que adquirem assim um alcance político, pois o diálogo é a base da formação das comunidades humanas, deixando de ser, conseqüentemente, um mero conceito abstrato, para descrever uma experiência concreta (Zuben in: Forghieri, 1984).

Buber (1977) afirma existirem duas atitudes básicas, duas formas de existir ou de ser-no-mundo, que alternam-se ao longo da existência humana: as atitudes Eu-Tu e Eu-lsso. Não se tratam de dois tipos de homem, mas duas posturas presentes em todos nós, em nossa relação com o outro, com as coisas e com o mundo.

Na atitude Eu-Tu, o homem integra-se completamente com o mundo, numa totalidade caracterizada pelo envolvimento, pela integração dos opostos, desaparecendo as peculiaridades e contradições individuais. O Tu não necessariamente é uma pessoa, podendo referir-se a animais, elementos da natureza, obras de arte ou divindades.

Podemos caracterizar como aspectos essenciais referentes à relação Eu-Tu (Zuben in: Forghieri, 1984):

a) reciprocidade: trata-se de uma dupla ação mútua entre os parceiros da relação. Cada pessoa-sujeito pressupõe a existência da outra, pois a ausência de uma delas põe fim à inter-relação, à reciprocidade. É nas relações humanas que a reciprocidade atinge o máximo de intensidade.

b) presença: ou o momento da reciprocidade. É esta presença que garante a alteridade, a diferença entre o Eu e o Tu, o que propicia o surgimento de um Nós, uma totalidade de pessoas independentes, que se escolhem entre si.

c) imediatez: a relação Eu-Tu ocorre aqui-e-agora, é direta, imediata. Nada se interpõe entre os parceiros (idéias, preconceitos, representações). O Eu se relaciona com a presença recíproca do Tu e não com a sua imagem.

d) responsabilidade: o conceito de responsabilidade deve ser entendido não como um dever ético ou uma obrigação moral, mas como habilidade de resposta (Buber, 1982; Perls, 1977). “A verdadeira responsabilidade se encontra onde há possibilidade de resposta” (Zuben in: Forghieri, 1984, p. 81).

“Responder a quê?” – indaga Buber (1982). “Responder ao que nos acontece, que nos é dado ver, ouvir, sentir” (p. 49). Eu e Tu respondem à situação presente, ao que o outro lhe apresenta. Portanto, responsabilidade pressupõe disponibilidade para estar totalmente com o outro (noção de encontro), pois o homem é um ser-com, um ser de relações (Zuben in: Forghieri, 1984).

Entretanto, a relação Eu-Tu é uma experiência fugaz, rara a difícil. O homem não suporta manter um envolvimento tão intenso constantemente. Ele se afasta, se recolhe e o Tu tende a tornar-se um Isso, permanecendo em estado latente, enquanto possibilidade. Compreende-se, assim, que o Isso não necessariamente refere-se a coisas ou objetos.

Segundo Forghieri ([org.], 1984), o que caracteriza a relação Eu-Isso é a separação, o distanciamento entre o Eu (Egótico) e o Tu (Isso, Ele, Ela). O Egótico afasta-se, lidando com o Isso enquanto objeto do conhecimento a da ação (Zuben in: Forghieri [org.], 1984). Ainda de acordo com Zuben, Buber destaca, entre as modalidades da relação Eu-Isso, a experiência. Trata-se de um relacionamento de certa forma unidirecional entre o Eu (Egótico) e um objeto manipulável (lsso), caracterizado pela coerência espaço-temporal, delimitada e coordenada. O Egótico encerra em si toda a iniciativa da ação, não se voltando para o outro. É a própria atitude científica.

Não se deve encarar a relação Eu-Isso como algo negativo, pois trata-se de uma das atitudes humanas frente ao mundo, que permite-nos apreender as conquistas técnico-científicas da humanidade. É mais duradoura e estável, propiciando ao homem sensação de segurança. Torna-se negativa quando submete o homem, levando-o à decadência de seu poder de decisão, de responsabilidade a de disponibilidade para o encontro. “E com toda a seriedade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem” (Buber, 1979; p. 39).

2. REPERCUSSÕES SOBRE AS PSICOTERAPIAS HUMANISTAS: TEORIZAÇÃO X ENCONTRO

As concepções de Buber sobre o encontro e o diálogo e suas reflexões baseadas nas atitudes Eu-Tu a Eu-Isso propiciaram uma proposta de relação psicoterápica sob um novo prisma (Buber, 1965; Zuben in: Forghieri [org.], 1984). Partindo da experiência­cia concreta, vivida, Buber sugere uma superação do primado da ciência sobre o vivido. Mesmo reconhecendo a necessidade e, mais do que isso, a imprescindibilidade­do conhecimento científico na psicoterapia, a relação psicoterápica deixa de ser um mero vínculo Eu-Isso entre um cientista e seu objeto, para tornar-se um encontro entre duas pessoas, de sujeito-a-sujeito.

Surgindo como uma reação aos métodos das psicoterapias positivistas (di­cotomia sujeito-objeto; objetividade; experimentação), as psicoterapias humanistas­tas tendem a utilizar uma metodologia que se contrapõe à anterior, ou seja, o método fenomenológico: intuição originária ou das essências; intencionalidade e inter-subjetividade; redução ou abstenção fenomenológica (Angerami, 1985).

Adotando a metodologia fenomenológica, pode-se verificar que as psicoterapias­humanistas elegem a atitude Eu-Tu como a forma de relação psicoterápica por excelência. Psicoterapeuta e cliente são cada vez mais compreendidos como duas pessoas, envolvidos numa relação de sujeito-a-sujeito, essencialmente igualitária, baseada na inter-subjetividade, intuição e afetividade.

Por outro lado, a atitude Eu-Isso tende a ser relegada a segundo plano e até mesmo vista como prejudicial, como um vinculo objetivante e frio, onde o psicoterapeuta (cientista-sujeito) age sobre o cliente (objeto manipulável). Cria-se um pudor em relação ao saber científico, como se este propiciasse relações mecânicas e pré-determinadas. Esquece-se que uma das condições básicas para toda e qualquer relação é a alteridade*, a diferença, e que psicoterapeuta e cliente, apesar da semelhança das experiências concretas humanas, são evidentemente diferentes. O cliente busca ajuda profissional e humana, enquanto o psicoterapeuta detém o suposto poder‑saber; o psicoterapeuta oferece um dado serviço e o cliente paga pelo mesmo. Portanto, o que diferencia essencialmente psicoterapeuta e cliente e o saber científico.

Percebe-se, assim, que as psicoterapias humanistas retomam questões básicas para a relação psicoterápica: a atitude Eu-Tu, o movimento dialógico e o encontro. Por outro lado, exacerbando estes componentes, perderam indubitavelmente no que se refere à consistência teórica. Não me parece por acaso que, freqüentemente, tenhamos a impressão (como alguns pensam), de que para se ser um bom psicoterapeuta humanista bastaria ser dotado de intuição, ter disponibilidade para o encontro e afetividade.

Assim, parece ter ocorrido, ao nível das psicoterapias humanistas, uma dicotomia entre o encontro e a teorização, como se estes dois pólos não pudessem e não devessem estar intrincados numa síntese dialética. Em alguns casos, chega-se a certos exageros, caindo-se no chamado “fetiche da vivência” (Drawin, 1985, p. 14) e a relação psicoterápica corre sobre trilhos suspensos no ar, sem a devida fundamentação no terreno teórico.

Que conseqüências advêm de tudo isto para as psicoterapias humanistas? Constata-se inevitavelmente que as psicoterapias humanistas parecem desequilibradas, isto é, assentadas, por um lado, nos aspectos referentes às questões da relação psicoterápica, mas, por outro lado, atrofiadas quanto à consistência teórica.

A lacuna quanto à teorização evidencia-se claramente num dos aspectos mais salientados entre as psicoterapias humanistas: a valorização dos sentimentos. Se esta valorização, na verdade, é positiva, já que nossos sentimentos são os motivadores de nossa ação e, portanto, de nossas mudanças, no entanto, implica, muitas vezes, no que poderíamos chamar de uma fobia ao racional. O cliente, e freqüentemente o psicoterapeuta, são induzidos a agirem a partir apenas de seus sentimentos. Este estado de coisas representa, mais uma vez, uma visão de homem dicotomizada. Reagindo à posição anterior (positivista), que supervalorizava a racionalidade e o pensamento, as psicoterapias humanistas parecem, por vezes, conceber um homem sem cérebro, movido por um coração, mas incapaz de pensar.

Diante desta situação, não bastaria ater-se à constatação e às críticas. É preciso buscar caminhos que nos reconduzam, enquanto psicoterapeutas humanistas, a uma concepção de psicoterapia mais globalizadora e totalizante.

3. ALGUMAS PROPOSTAS DE SOLUÇÃO

O pensamento de Edmund Husserl parece-me um primeiro passo na retomada deste caminho. Face à contraposição entre a especulação metafísica e o raciocínio positivista, Husserl apud Dartigues (1973) propôs uma filosofia nova, que unisse:os dados da experiência o pensamento em sua totalidade + racional = FENOMENOLOGIA (FENÔMENO) (LOGOS)

Um retorno à fenomenologia parece necessário. “É, como dissemos, um postulado da fenomenologia que o fenômeno seja lastrado do pensamento, que seja logos ao mesmo tempo que fenômeno” (Dartigues, 1973, p. 21).

Como se percebe, não basta ficar com o fenômeno como ele nos aparece. É necessário às psicoterapias humanistas um pensar sobre, a reflexão acerca da experiência vivida, para que se dê a compreensão dos fenômenos característicos da psicoterapia.

Um outro passo pode ser representado pela contribuição valiosa de Maurice Merleau-Ponty. De acordo com Rezende (in: Forghieri [org.], 1984), o referido autor propõe alguns critérios concernentes a uma psicologia de inspiração fenomenológica: primeiramente, a psicologia deve ser uma ciência humana, ou seja, partir do próprio homem para compreendê-lo e a seus caminhos. Esta psicologia deve ser estrutural, isto é, deve investigar as diversas experiências humanas, integrando-as em seus vários níveis, formas e mundos. Outro aspecto é seu caráter dialético, reconhecendo a pluridimensionalidade no interior da existência, por oposição ao psicologismo. Um outro critério referente à psicologia fenomenológica é que ela deve ser simbólica, já que o homem é polissêmico, encarnando os seus vários significados. Finalmente, esta psicologia não deve ser apenas existencial, uma teoria sobre o humano, mas um estudo do seu existir concreto.

Retomando Buber, proponho uma melhor compreensão da dialética das atitudes Eu-Tu e Eu-Isso no campo das psicoterapias humanistas. Vale lembrar que o encontro existencial se dá através de dois movimentos (Zuben in: Forghieri [org.], 1984):

- distanciamento: onde o homem (psicoterapeuta) coloca-se frente a frente ao outro (cliente), reconhecendo sua alteridade (diferença), independente de si mesmo;

- relação: quando acontece a presentificação do outro enquanto pessoa.

Em outros termos, já é o momento das psicoterapias humanistas reconhecerem a necessidade de teorização acerca da relação psicoterápica, para que a própria relação e o próprio psicoterapeuta possam estar assentados em bases sólidas. Acredito que só assim as psicoterapias humanistas terão um verdadeiro reconhecimento enquanto abordagens científicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que foi dito, quero destacar a necessidade premente, para aqueles que se dedicam às psicoterapias humanistas, de uma considerável dedicação ao estudo não só da filosofia referente à psicoterapia, da fenomenologia, do existencialismo e de questões relativas a abordagens específicas, mas de uma reflexão sobre os relacionamentos psicoterápicos específicos nos quais nos envolvemos. É preciso retomar as bases filosóficas que fundamentam a nossa prática psicoterápica, para que nos tornemos verdadeiramente dotados de uma responsabilidade no que se refere a nossos clientes, a nós mesmos, à relação psicoterápica e ao nosso instrumento de trabalho, a psicoterapia.

Encerrando, um alerta. Ao propor uma clara retomada da teorizacão ao nível das psicoterapias humanistas, isto não significa um abandono ou um menosprezo à atitude Eu-Tu, ao encontro e à inter-subjetividade. Omitir este pólo significaria deixarmos de nos denominar psicoterapeutas humanistas, ou seja, não mais reconhecer, como afirma Forghieri ([org.], 1984), que, “em síntese, o psicoterapeuta atua numa alternância entre o conhecimento objetivo e a intuição categorial, entre o Eu-Isso e o Eu-Tu, entre o passado e a presentificação, entre o raciocinar e o existir como totalidade, entre o agir sobre o cliente e o ser-com ele” (p. 30).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGERAMI, V.A. Psicoterapia Existencial: Noções Básicas. São Paulo: Traço, 1985.

BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977.

_____. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.

DARTIGUES, A. O que É a Fenomenologia. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, 1973.

DRAWIN, C. R. Ética e Psicologia: Por uma Demarcação Filosófica. Psicologia, Ciência e Profissão, 5 (2), p. 14-17, 1985.

FORGHIERI, Y. C. (org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984.

PERLS, F. S. Gestalt Terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977.

REZENDE, A. M. de. Fenomenologia e Dialética in: FORGHIERI, Y. C. (org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984, p. 35-48.

ZUBEN, N. A. Diálogo e Existência no Pensamento de Buber in: FORGHIERI, Y. C. (org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984, p. 71-85.

Tornar-se pessoa, hoje!

Emanuelle Coelho Silva

*Texto escrito em fevereiro de 2006.

Vivemos num mundo onde a máxima é aquela expressa nos outdoors, nas grandes propagandas veiculadas pela televisão e mesmo pela internet: “seja magro”, “seja forte”, “lute pelos seus ideais”, “faça inglês”, “seja o homem do século XXI” seja a qualquer custo! [Mais...]

Mas o que nos custa este SER contemporâneo, este novo ser? Esses slogans que nos remetemos e nos intimamos a seguir, não são “obrigatoriedades” para homem atual, mas já vêem de outras épocas humanas, onde outros modelos eram requeridos, mas a máxima era a mesma SEJA, mas seja aquele que eu lhe digo ser, aquele que atende o meu ser. Talvez possamos até nos remeter a Nietzsche, que em seu célebre trabalho “Assim falou Zaratustra”, já nos dizia tão bem sobre esse “super-homem” a que estamos ligados.

Mas o que nos torna seres humanos realmente? O que nos torna pessoa hoje? Como? O que? Quando? Quanto? A que custo?

Tornar-se pessoa não é tarefa simples, não é apenas abdicar das ofertas hi-tech do século XXI, nem tão pouco fingir que elas não existem. Tornar-se pessoa passa pelo íntimo do ser, é preciso mergulhar em si mesmo, verificar e presenciar o caos do EU para depois lançar-se fora e unir-se ao que foi quebrado. Novamente, pensando nas palavras de Nietzsche pra ilustrar, “É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”.

Nesta tentativa de tornar-se pessoa, por vezes nos perdemos em rótulos, estigmas e exigências de uma sociedade marcada pela estética e pela aparência. A essência é perdida e por vezes nos vemos tão perdidos quanto. Nessa longa caminhada, Nietzsche, em “Assim Falou Zaratustra” retrata o sofrimento, o caos e a luta interna (e até mesmo externa) que desbravamos para alcançar a nossa própria verdade, nossa essência, o EU enfim. É preciso ressaltar que a verdade aqui, é a verdade interna, é a verdade de cada um, é o eu-pessoa.

O que é a existência senão a luta por descobrir o que somos e para onde iremos, em nossa longa jornada? De que certezas têm o homem senão de seu próprio fim? Que mudanças este homem pode procurar, ou mesmo se permitir para encontrar essa pessoa que está dentro dela, pedindo para sair?

Ser humano é demasiado complexo e por vezes penoso. Mas é sempre a partir dessas provações (e até provocações), que as verdades, individuais são transmutadas, mudadas e moldadas, levando a plenitude do EU, a plenitude do ser e a volta do tornar-se pessoa. Conhecer-se, compreender-se, aceitar-se e novamente conhecer-se é o que realmente nos torna pessoa.

Esse caminho que é percorrido em busca de tornar-se realmente pessoa, é por vezes dolorido, uma vez, que nos vemos frente à verdades que parecem insuportáveis, mas são esses momentos em que a real pessoa torna a vir, deixa os rótulos, as exigências, os slogans e é apenas SER. Um músico americano, Jim Morrisson, soube bem retratar essa angústia da existência e essa procura por si mesmo, a briga com o tempo, com a imagem, dizendo em trecho de sua poesia:

(…) Desista de seus votos, desista de seus votos

Salve a nossa cidade, salve a nossa cidade

Agora mesmo

(…) O futuro é incerto e o fim está sempre perto. (…)

Não é possível encontrar-se sem perder-se, e esse processo é doloroso, mas engrandecedor, revelador. É a descoberta da tomada de consciência livre de ser humano. É o momento de encontro com si mesmo.

“Uma pessoa que está mais aberta a todos os elementos de sua experiência orgânica; uma pessoa que está desenvolvendo uma confiança em seu próprio organismo como instrumento de vida sensível; uma pessoa que aceita o foco da avaliação como residindo dentro de si mesmo; uma pessoa que está aprendendo a viver em sua vida como um participante em um processo fluido, continuo, em que está constantemente descobrindo novos aspectos de si mesmo no fluxo de sua experiência. Esses são alguns dos elementos que e parecem estar envolvidos em tornar-se pessoa.” (Carl Rogers, 1995: 140)

Bibliografia consultada

BOAINAIM, Elias. Tornar-se Transpessoal: Transcendência e Espiritualidade na obra de Carl Rogers. Summus Editorial, 1998. p. 23-41: A psicologia Humanista.

GUSMAO, Sonia Maria Lima de. A natureza humana segundo Freud e Rogers. João Pessoa: 1196.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução Alex Marins. Editora São Paulo: Martin Claret, 2005.

ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. Tradução Manuel Jose do Carmo Ferreira e Alvamar Lamparelli. São Paulo: Martins Fontes, 1995

Terapia Ocupacional: Uma viagem aos caminhos da saúde mental

*Patrícia Moreira Bastos

*Texto escrito em 2003.

Acredito, sob qualquer circunstancia, que o futuro sempre será o resultado da relação entre o passado e o presente, e de como esta relação pode ser vivenciada em termos de desenvolvimento, maturação e produção.
[Mais...]
A partir desta perspectiva, foi possível, reunir tantos outros saberes, que percorreram caminhos também para a construção de conhecimentos, que felizmente contribuíram historicamente com o que fomos, somos e possivelmente seremos : nossa consciência enquanto terapeuta ocupacional.

A mente humana grava e executa tudo que lhe é enviado,seja através de palavras, pensamentos ou atos, seus ou de terceiros, sejam positivos ou negativos, basta que você os aceite.

Essa ação sempre acontecerá, independente se traga ou não resultados positivos para você. Isto é um alerta para filtrarmos o que enviamos para nossa mente, pois ela não distingue o real da fantasia, o certo do errado, simplesmente grava e cumpre o que lhe é enviado.

Todos nós sabemos que o homem pensa, progride, e que pode agir livremente; entretanto tende a negar o que é invisível ou o que não seja percebido pelas sensações, não se dando conta que sua existência está na sua consciência, uma consciência intencional. (A intencionalidade da consciência significa que toda consciência não é somente consciência, mas também consciência de alguma coisa, implicando numa relação intrínseca com o objeto.)

A consciência é o sustentáculo das operações vitais do homem, o que faz com que viva, sinta, se locomova, e entenda; uma realidade que subsiste por si só, imaterial, espiritual, e que necessita de uma causa, que explique essencialmente a existência do homem. Tal causa não deve ser algo simplesmente acidental ou superficial, pois o sentimento, a vontade, a inteligência são realidades profundas e que caracterizam o ser humano como uma criatura peculiar, especial.

Pensar em Terapia Ocupacional é antes de tudo definir nossa visão de homem, enquanto existência, o que representa uma tarefa que exige conhecimento; e quanto mais os homens conhecem o homem, mais temerária se torna a tentativa de definição.

É em razão disso que Gabriel Marcel se refere ao homem como ?mistério?; e Sartre, que ?o homem não é o que é, pois ele é o que não é?, o homem está sendo; é no que ele é capaz de ser e não meramente no que ele é.

O homem é um ser pensante, co-criador, e transformador de sua realidade. O auto conhecimento é possível à partir da convivência com o outro, pois viver é radicalmente conviver. Viver, é ser para-o-outro e com-o-outro.

O homem comporta-se à partir da racionalidade, o que lhe permite a condição de auto-determinação, enfim, de ser livre. Entretanto, essa liberdade está condicionada a um processo de maturação, no qual sua manifestação é exercida gradativamente, conforme o desenvolvimento da razão.

A liberdade, aquela que captamos em nós, é a consciência da ação exercida por uma idéia, a saber, a idéia do máximo de independência que sob a dupla relação da causalidade e da finalidade, pode atingir o eu que concebe o universal. A liberdade é a imunidade de vínculos ou marcas; podendo ser física quando dirigida aos movimentos e deslocamentos, moral quando envolve as questões legais,e, psicológica ou pessoal, também chamada de livre-arbítrio, ao permitir tomar decisões ou escolhas conforme sua vontade, inteligência e intencionalidade.

Pensando, o homem faz, realiza, transforma e busca um rompimento com aquilo que traz em si, abrindo-se para a transcendência. O pensamento é condicionado pela ação, a vida não consiste apenas em pensar logicamente, mas também em agir.

KANT reconheceu que o homem pode utilizar seu intelecto ? sua razão, não apenas como receptor de impressões mas como criador de idéias ? a faculdade de pensar.

Quando o homem desperta para o conhecimento, passa a construir uma trilha infinita, onde se volta para sua interioridade para desvendar-se, e para exterioridade para relacionar-se com a realidade circundante, integrando-se nela e na realidade de seu ser. Então, percebe que os horizontes de sua liberdade dependem dos horizontes do seu conhecimento. A garantia do conhecer está na intencionalidade da busca da verdade. A vida humana é essencialmente ação.

O ato de refletir e o valor do conhecimento são legitimados através da atitude.Toda ação é efeito, então, estando o ato de refletir relacionado com o ato de pensar, é a atitude pensada na verdade que qualifica o conhecimento, e não a simples e conseqüente ação motora.

O ser humano desenvolve sua vida em plenitude através da ação. O conhecimento só tem razão de ser na medida em que estimular a atividade, a ação na linha da utilidade.

Em a vida é atividade, princípio que rege tanto a vida corporal como a mental, dado que o homem nunca permanece sem fazer nada; senão faz algo útil, faz algo inútil? , segundo Francisco (1990), é possível entender que o homem é dotado de uma natureza ocupacional, o que caracterizou-o como detentor ativo de potencial de construção e transformação de sua realidade, portanto, qualquer mudança ou situação que venha trazer algum prejuízo ou disfunção ao homem, pode ser considerado como conseqüência da ausência ou comprometimento de atividade ou ocupação, através das atividades relacionadas ao trabalho, de vida diária, de vida prática e de lazer.

É possível então perceber que quando o homem encontra-se numa situação de harmonia e equilíbrio de sua realidade, fazendo uso ativo de seu tempo-espaço, ele responde a uma manifestação de qualidade de vida e saúde. A atividade humana, é a atividade da consciência, resultado da relação entre a reflexão e a ação, mediados pela intencionalidade, vontade, e liberdade.

Para DE CARLO (2001) ? as atividades humanas são constituídas por um conjunto de ações que apresentam qualidades, demandam capacidades, materialidades e estabelecem mecanismos internos para sua realização.(…) A linguagem da ação é um dos modos de conhecer a si mesmo, de conhecer o outro, (…) darão forma e estrutura ao fazer dos sujeitos,(…) estabelecendo um sistema de relações que envolve a construção da qualidade de vida cotidiana.?

E a qualidade de vida cotidiana, nada mais é que a percepção subjetiva do sujeito sobre seu bem estar e suas condições de vida. O cotidiano não é rotina, nem a mera repetição automata de movimentos ou ações que levem um fazer por fazer. O cotidiano, segundo FRANCISCO (1988) é o espaço próprio onde o sujeito busca praticar sua atividade criativa e transformadora. É o espaço social que o sujeito ocupa, vive.

Ao longo dos meus 25 anos de atuação profissional, venho construindo o meu fazer através de diversas concepções que têm fortalecido não só às novas definições relativas a ?complexidade do sujeito? (CARVALHO,2003), como permitido a delineação de uma nova forma de ver o homem, e conseqüentemente às novas formas de intervenção em Terapia Ocupacional, sem perder de vista o contexto sócio-histórico e cultural.

Entretanto, embora se possa estar vivenciando uma diversidade de propostas e diferentes realidades socioculturais, as igualdades e diferenças também permeiam a intervenção da Terapia Ocupacional, na medida em que se convive com um confronto entre o momento histórico de extremo avanço tecnológico, com acesso limitado para alguns personagens da humanidade, e a luta pela aquisição de recursos básicos de sobrevivência com dignidade.

A Terapia Ocupacional, manifestada pelo terapeuta ocupacional, precisa expressar esta realidade – é a atividade humana e a consciência de saber fazer, que justificam sua ação, para que possa intervir estabelecendo condições de relações sociais mais justas, assegurando através de suas ações a qualidade de vida para o homem.

Ao buscar sempre uma realidade, posiciono-me em direção do futuro; e, algumas questões importantes me vêem à mente:

Quando nos referimos a saúde mental, para qual sujeito estamos dirigidos?

Ao nos relacionarmos com o outro, o que temos aprendido, ou quem ensina a quem?

Quais os limites estabelecemos na relação terapeuta e paciente, no contexto da Saúde Mental?

Intervir no contexto da Saúde Mental representa alguma diferença para outros contextos?

(*) terapeuta ocupacional com especialização em Saúde Pública reconhecida pelo COFFITO;terapeuta ocupacional do Ambulatório de Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira, desde 1985,Salvador-Ba.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DE CARLO,Marysia M.R.Prado. & BARTALOTTI,Celina C. Terapia Ocupacional no

Brasil:fundamentos e perspectivas,Plexus,São Paulo,2001.

FRANCISCO,Berenice Rosa. Terapia Ocupacional. Papirus,Campinas,1988

GIRARDI,Leopoldo Justino. Filosofia.Acadêmica,Porto Alegre,1988.

Projeto de educação popular. Uma contribuição da Psicologia Clínica Humanista.

Sônia Maria Lima de Gusmão

*Texto apresentado no IV Fórum Internacional da Abordagem Centrada na Pessoa no Rio de Janeiro- 1989.

Neste texto procuro associar dois campos de minha atuação profissional- meu trabalho como facilitadora em grupos vivenciais e minha prática como educadora- ambos dentro da abordagem humanista centrada na pessoa, e proponho um trabalho junto aos coordenadores de debates, no sentido de favorecer neles atitudes facilitadoras, indispensáveis à uma prática efetiva de educação popular. [Mais...]

Existe algo de terapêutico no processo educativo, do mesmo modo que existe algo de educativo no processo psicoterápico. Assim, tenho observado o crescimento de meus alunos como pessoas e a aprendizagem constante nos meus clientes. Neste contexto, a verdadeira educação e a psicoterapia se confundem: ambas conduzem à mudança.

Muitas vezes tenho me perguntado sobre o que conduziria pessoas humilhadas, sofridas e empobrecidas, por uma situação social injusta e opressora, a não buscarem mudança, a não lutarem por uma vida mais digna e humana. Minhas observações apontam em duas direções – ambas têm como palco a família e como pano de fundo a sociedade opressora, em que estamos inseridos. A direção da superproteção, cuja mensagem oculta bem poderia ser: “você não tem condições de enfrentar o mundo, você é frágil, precisa que eu cuide de você”, o que equivale a um atestado de incompetência. Ou a do autoritarismo, presente nas figuras parentais. Ambas cerceiam e limitam a liberdade de ser.

Parece que a maior das opressões foi aquela que internalizamos, quando criança. Foi o “não”, “engolido a seco”, diante da postura autoritária de nossos pais, que nos fizeram pequenos, além do físico, diminuídos, humilhados e sem poder. O “não”, preso na garganta, nos impediu, mais tarde, de nos opormos às situações maiores de opressão. Nos deixou ser sugados e espezinhados por uma estrutura social injusta e desumana. Nos despreparou para o enfrentamento do mundo adverso, que nos esperava. Nos deixou sem poder.

O papel do psicólogo, que desenvolve seu trabalho na comunidade é, entre outros, o de liberar esse grito, esse “não” contido, que não transpôs a barreira da garganta, submetendo seu detentor a “sins lacaios”, que obstrui, dessa forma, seu processo de crescimento e de conscientização.

Tenho observado que a participação em Vivências Comunitárias Alternativas tem propiciado às pessoas a expressão desse “não” aprisionado, com uma carga energética muito grande, o que faz com que elas adquiram melhores condições de se opor ao ambiente, lutando contra a opressão.

Considero, a partir dessas experiências grupais e mesmo da terapia individual, que só vencendo a barreira internalizada, é que poderemos vencer as outras barreiras que o social nos impõe. Somente pelo enfrentamento, pela coragem de se opor, de dizer “não” e de correr riscos, poderá realmente ser mudada a situação de opressão. E essa coragem, acredito, poderá ser atingida a partir de um contexto facilitador, onde o indivíduo experiencie o contrário da vivência opressora, liberando seus medos, sua dor, sua revolta e se potencializando para o enfrentamento. Contexto, esse, fortemente marcado por atitudes como autenticidade, empatia e aceitação.

WORKSHOPS: UMA DEMONSTRAÇÃO E UMA OPÇÃO DE FORMAS MAIS DIGNAS E AUTÊNTICAS DO VIVER SOCIAL

Nestas duas últimas décadas, a Abordagem Centrada na Pessoa, através de Carl Rogers e de sua equipe, se dedicou à construção de comunidades (provisórias) formadas por grupos de 50 a 200 pessoas e, eventualmente, de 600 a 800 pessoas. Esses workshops, como são chamadas essas comunidades, não têm fins lucrativos nem estão ligadas às instituições governamentais ou quaisquer outras instituições, garantindo-lhes, assim, a autonomia necessária a um processo decisório grupal, livre de interferências alheias ao próprio grupo. A expressão do “ser” é a tônica dominante desses encontros e o poder dos facilitadores é compartilhado com os demais membros do grupo, de modo a que todos possam vivenciar o seu próprio poder pessoal. A autenticidade está presente em cada momento da vivência, na medida das possibilidades de cada um numa permanente expressão do “ser”. E apesar da persuasão, interpretação ou manipulação não serem usadas pelos facilitadores, não se observa, da parte deles, nenhuma atitude de laissez-faire, Suas participações são ativas, inclusive na expressão de sentimentos.

Rogers enfatiza que, “o sentimento de comunhão não surge do movimento coletivo, nem da submissão às ordens de algum grupo. Pelo contrário, cada indivíduo tende a usar a oportunidade para tornar-se tudo aquilo que pode tornar-se. Vivencia a individuação e a diversidade – a singularidade de ser um “eu”. É justamente essa característica de acentuada individuação da consciência que parece elevar o nível do grupo a uma unidade de consciência. Descobrimos que cada pessoa não só percebe o workshop como um lugar onde pode satisfazer necessidades pessoais, mas também configura ativamente uma atuação que permite esta satisfação. Um indivíduo descobre novas maneiras de encarar um momento difícil no casamento ou na carreira. Outro obtém insights que permitem crescimento interno. Outro aprende novas formas de construir uma comunidade. Outro adquire mais habilidades nas relações interpessoais. Outros descobrem novos meios de renovação espiritual, artística e estética. Muitos voltam-se para uma ação mais lúcida e eficiente que vise a mudança social. Outros experienciam combinações dessas aprendizagens” (2)

Um outro aspecto destacado nessas vivências diz respeito aos valores. Aqueles que nos são impostos de fora, tendem a ser questionados. O indivíduo toma consciência do peso desses valores sobre sua vida e muda, guiando-se, agora, pelos seus próprios valores organísmicos. Percebe seu próprio valor e o expressa com liberdade.

Rogers observa, ainda, que (…) “na vida comum, o curso de uma ação é ordenado pela autoridade, e, a menos que nos ultraje, tendemos a obedecer à ordem, a seguir a regra. Embora as pessoas possam reclamar, parece que, em geral, todos aceitam as regras. Todas as reações complexas ficam encobertas.

Mas na comunidade de um workshop, onde as pessoas percebem seu próprio valor e sentem-se livres para se expressarem, a complexidade torna-se evidente.” (3)

A essência positiva das pessoas é outro ponto visível nessas comunidades. Observa-se que o ser humano, longe de ser a besta-fera tão temida, a partir de um contexto psicológico adequado, é realmente digno de confiança: suas potencialidades se atualizam de maneira surpreendente, se destacando seus aspectos construtivos e sociabilizantes, ele se torna “criativo, automotivado e poderoso.”

A IMPORTÂNCIA DA COMUNICAÇÃO VERDADEIRA NO TRABALHO DE EDUCAÇÃO POPULAR

Para Paulo Freire, uma das maiores dificuldades da Educação Popular consiste na preparação dos quadros de coordenadores. Esta dificuldade é colocada não do ponto de vista técnico, pois este é facilmente assimilável pelos futuros agentes, mas na criação de atitudes que venham possibilitar ao coordenador uma relação dialogal profunda e horizontal – do tipo EU-TU – onde os dois envolvidos são sujeitos nesta relação.

É evidente que, para que aconteça uma relação dialógica, certas condições devem estar presentes: o respeito e a crença no ser humano, além do não exercício do poder sobre o outro. O poder deve ser compartilhado, num clima de autenticidade, onde um aprende com o outro.

Outro ponto importante diz respeito a necessidade do agente participar de uma supervisão, igualmente dialogal, evitando, assim, a tentação da manipulação.

“Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora, em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os como quase “coisas”, com eles estabelece uma relação dialógica permanente .”
(. . . ) “Uma liderança revolucionária, que não seja dialógica com as massas, ou mantém a “sombra” do dominador “dentro” de si e não é revolucionária ou está redondamente equivocada e, presa de uma sectarização indiscutivelmente mórbida, também não é revolucionária.” (4)

Freire enfatiza, ainda, a necessidade do coordenador não se proteger em falsas certezas, onde a segurança advém do aprisionamento da realidade, arriscando-se a conhecer a realidade para melhor transformá-la. O que só será atingido pelo enfrentamento, pela capacidade de saber ouvir e de manter um encontro real com o povo .

A propósito da criação de atitudes necessárias para se atingir níveis superiores de atuação política, Júlio Barreiro, coloca:

“A Educação Popular aproveita e deve aproveitar todas as oportunidades para criar atitudes e comportamentos capazes de conduzir a níveis superiores de atuação política a organização do povo em torno de seus interesses, imediatos ou não, mas que sirvam, ao mesmo tempo – sejam uns ou outros – para provocar o seu sentido crítico, autônomo, criativo”. (5)

Quando tentamos estabelecer um paralelo entre a Educação Popular e a Abordagem Centrada na Pessoa, observamos que seus objetivos são semelhantes em vários aspectos. Ambas enfatizam a criação de atitudes que conduzam a um viver mais autônomo e criativo; acreditam no ser humano e centram-se nele; acreditam no peso do social sobre o comportamento dos homens e buscam formas de vidas mais dignas e justas, através de um processo de conscientização e de libertação do ser.

Raquel Rosenberg, educadora e psicóloga centrada na pessoa, referindo-se ao papel social do terapeuta, afirma:

Observo que, à medida que se permite às pessoas tomarem maior consciência de seus verdadeiros desejos e sentimentos, inevitavelmente elas se sentem mais poderosas em relação ao seu destino e mais diretamente responsáveis por si mesmas. Tal mudança, por sua vez, constitui um terreno fértil para o desencadeamento de uma atuação social mais claramente propositada e possivelmente mais efetiva. (6)

Parece-me que há um perfeito encontro entre a Educação Popular e a Abordagem Centrada na Pessoa.

O trabalho em educação, desenvolvido por Paulo Freire, enfatiza a necessidade de uma educação voltada para a decisão e para a responsabilidade social e política; uma educação que possibilite ao homem oprimido a discussão corajosa de sua problemática; uma educação que o mantenha comprometido com a praxe de sua libertação, com a conquista de sua humanização usurpada; uma educação que não traz soluções prontas, mas que possibilita um contexto de reflexão-ação, onde essas soluções são geradas e decididas pela própria comunidade.

Rogers refere-se a respeito da pedagogia de Freire, que ele considera essencialmente centrada na pessoa, do seguinte modo:

Os membros ao se revelarem uns aos outros, começam a acreditar em si mesmos como pessoas, assim como nos outros membros do grupo. Mudam seus objetivos. Ao invés de simplesmente aspirarem tornar-se opressores, imaginam um novo tipo de sistema social, mais humano. Finalmente começam a avançar no sentido de mudar as terríveis condições as quais vivem. (7)

Algo interessante de ser notado é o mecanismo utilizado pelas classes dominantes, que, ao se sentirem ameaçadas, acentuam a repressão. No caso de Paulo Freire, este se viu perseguido e obrigado a se exilar após o golpe militar de 1964.

Compartilhar o poder parece algo profundamente ameaçador para quem o detém, à custa da desumanização dos outros e da sua própria. Da sua por opção e da dos outros por imposição.

CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA CLÍNICA HUMANISTA À EDUCAÇÃO POPULAR

O conhecimento humano tem se ampliado e se diversificado, de tal modo que parece fora de dúvidas a necessidade de trabalhos multidisciplinares. Na tentativa de se acumular cada vez mais conhecimentos, a realidade tem se transformado em algo que, de tão multifacetado, se torna inacessível, fazendo-se necessário uma união de esforços e de conhecimentos especializados, para que a possamos atingir, e, desse modo, contribuirmos com a educação popular no sentido da transformação social.

Acredito que os efeitos da Abordagem Centrada na Pessoa, quando utilizada por um facilitador (coordenador de debates) que possua as atitudes enfatizadas por Rogers – autenticidade, aceitação e compreensão empática – aliadas a um profundo respeito e crença no potencial humano, têm sido de fundamental importância no processo de libertação dos indivíduos, independente das categorias profissionais daqueles que pretendem facilitar no outro esse processo. Suas técnicas constituem um importante instrumento de conscientização e de transformações social e individual.

Sem cair na ingenuidade de reduzir a conquista da liberdade a essa atuação, considero que situações de opressão poderão ser superadas com a ajuda de tal abordagem, haja vista que a mesma potencializa os membros da comunidade, conduzindo-os ao auto-conhecimento, a auto-confiança e ao despertar da sua força, e, conseqüentemente, à ação.

Refletindo sobre o trabalho que eu poderia desenvolver junto as camadas populares, inicialmente senti-me inclinada a aprofundar o trabalho realizado, por mim, no Hospital Universitário, pois, talvez, em nenhum outro contexto a situação opressor-oprimido se mostre com tanta crueza. O poder é de tal modo exercido no ambiente hospitalar, frente às criaturas enfermas, que simplesmente as anulam como pessoas. “O paciente 308″, ” o perturbador da enfermaria 03″ são designações comuns aos pacientes internos. “Estou à procura de um fígado cirrótico para dar uma aula”, diz o médico-professor insensível ao fato de que tal fígado se encontra localizado numa pessoa. O professor entra na enfermaria com seus discípulos e todos se sentem no direito de manipularem o órgão enfermo, mais uma vez, insensíveis a dor e ao pudor da pessoa, que nesse momento é percebida como objeto. Pessoa que, na sua percepção “menosválida” de si mesma geralmente da zona rural não ousa sequer perguntar-lhes os nomes ou pedir para que sejam “traduzidas em miúdos” aquelas palavras que estão sendo ditas a seu respeito, e que, ditas daquela maneira, só fazem aumentar a sua angústia diante da vida e da morte. Pessoa, que as injustiças sociais se fizeram sentir com mais violência, roubando-lhe, também, a saúde.

Todavia, à medida que amadurecia nessa reflexão, cheguei à conclusão que, talvez eu pudesse contribuir de uma maneira mais ampla e efetiva se eu aliasse a minha experiência como facilitadora de grupos vivenciais – terapêuticos – e a minha experiência como educadora, atuando junto aos coordenadores de debates, no sentido de “treiná-los” nas atitudes facilitadoras, necessárias ao espaço de reflexão-ação, e contribuindo para reduzir as ansiedades e desgastes decorrentes, muitas vezes, de tal prática.

Baseio-me no seguinte:

1. apesar dos relatos bem sucedidos de educação popular, cuja literatura está cheia de exemplos, sabemos de muitos casos, não publicados, de experiências mal sucedidas e mesmo de desistências de coordenadores que se sentem decepcionados e sem condições de prosseguirem na sua tarefa;
2. muitas vezes, essa decepção é decorrente do despreparo do coordenador para lidar com o opressor internalizado que se exterioriza em algum membro da comunidade. Recentemente, em conversa com uma agente comunitária, ela colocava: – “É profundamente desestimulante, depois de tanto batalhar, percebermos que um dos membros porque conseguiu algo a mais que seus companheiros de luta, vira às costas para o grupo e passa a explorá-lo;”
3. outras vezes, decorre do fato de que o seu próprio opressor internalizado vem à tona e ele assume frente à comunidade, uma postura de controle, camuflada – quase sempre de paternalismo – o que só dificulta a comunicação real e autêntica;
4. a falta de uma maior clareza sobre si mesmo, sobre seu processo interior, pode conduzir o coordenador a uma postura inadequada diante da comunidade que se pretende facilitar a conscientização, haja vista que o mesmo pode projetar na comunidade aspectos seus não resolvidos ou clareados ou, ainda, manipulá-la;
5. não basta o saber teórico ou a boa intenção, é necessário que o coordenador possua determinadas condições: um respeito real e profundo pelo ser humano; uma capacidade para perceber, na comunicação, a intencionalidade ou o sentimento contidos e, muitas vezes, encobertos nas palavras do participante de grupo, demonstrada através de uma compreensão empática; que seja transparente na sua forma de ser, não assumindo falsas posturas diante do grupo; e que tenha, também, uma certa facilidade para se comunicar com a comunidade, fazendo com que os aspectos mencionados sejam percebidos;
6. a ausência dessas condições ou de alguma delas tem conduzido excelentes teóricos, com uma boa consciência crítica e bem posicionados politicamente, à práticas improdutivas, no campo da educação popular.

Concluindo, a minha proposta consiste em desenvolver um trabalho dentro dos princípios da abordagem humanista centrada na pessoa, junto aos coordenadores de debates, onde busco associar dois campos de atuação profissional – o meu trabalho como psicóloga, facilitadora de grupos vivenciais, e o meu trabalho como educadora, visando :

1. a criação de um espaço, onde os coordenadores possam refletir as suas práticas e liberar as tensões decorrentes das mesmas;
2. possam ampliar a sua auto-consciência e, por extensão, a sua compreensão do mundo, reduzindo, assim, possíveis projeções de sua parte nas comunidades que coordenam;
3. possam desenvolver atitudes que facilitarão o seu desempenho como coordenador de grupo, quais sejam :

a) compreensão empática, atitude que consiste em saber ouvir em profundidade, ou seja apreender a comunicação na sua totalidade, nos seus aspectos intencionais e emocionais, portanto, nos aspectos que transcendem o verbal;
b) autenticidade, cuja consistência reside no ser transparente para o outro, no caso para a comunidade, não assumindo falsas posturas;
c) aceitação positiva incondicional, atitude que diz respeito a aceitação do outro como ele é de fato, sem a imposição de condições, na sua forma de ser ou nos aspectos culturais, entre outros; o que não significa ser conivente com o sistema nem desejar a perpetuação das condições adversas que o transformaram num oprimido.

4. E, a partir dos ítens acima, o diálogo da libertação fluindo de uma maneira mais plena e satisfatória na comunidade, ampliando, assim, as condições que conduzem a uma atuação social mais efetiva.

CONCLUSÃO

Uma andorinha sozinha não faz verão. Ninguém, por si só, transformará o mundo em algo mais justo e digno de ser vivido. Faz-se necessário a união dos que querem a mudança: Psicólogos, médicos, educadores, advogados, assistentes sociais, engenheiros, enfim, todas as categorias profissionais integradas, contribuindo, cada um na sua área de conhecimento, para o bem comum, para o processo de conscientização das camadas populares, no sentido da transformação social.

Cabe à Psicologia Humanista, como não poderia deixar de ser, um papel importante neste momento de transição. Reconquistar a humanização perdida e quase esquecida não parece ser uma tarefa fácil de ser alcançada. A descrença no homem e a violação dos direitos humanos têm sido marcas registradas de nossa época. A consciência, em si mesma, não é suficiente, é necessário o compromisso – o envolvimento – para que se efetive a mudança.

NOTAS FINAIS

1. Texto apresentado no IV Fórum Internacional da Abordagem Centrada na Pessoa – RJ, agosto/1989, publicado no Caderno de Textos do CCHLA-UFPB e , posteriormente, na Revista de Psicologia , Fortaleza, V.6(2):15-24, jul./dez.,1988 ( edição publicada com atraso).
2. ROGERS, 1983, Um Jeito de Ser, p.58 e 59.
3. ROGERS, 1983, Op.cit., p. 62.
4. Conferir FREIRE, 1974 – Educação como Prática da Liberdade p. 115
5. ldem, 1974 – Pedagogia do Oprimido, p. 60.’
6. ldem, idem, p, 147
7. Conferir FREIRE, 1974 – Pedagogia do Oprimido, p. 24.
8. BARREIRO, Júlio, 1980 – Educação Popular e Conscientização, p. 13 e 14.
9. ROGERS & ROSENBERG, 1977 – A Pessoa Como Centro, p. 66.
10.ROGERS, 1986 – Sobre o Poder Pessoal, p. 109.

BIBLIOGRAFIA

BARREIRO, Júlio – Educação Popular e Conscientização. Petrópolis, Vozes, 1980. EVANS, R. l. – Carl Rogers: o homem e suas idéias; São Paulo, Martins Fontes,1979.
FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade, 4ª. ed., RJ, Ed. Paz e Terra, 1974.
______ Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Editora Paz ‚ Terra,1974.
ROGERS, Carl R. – Liberdade de Aprender na Nossa Década, Porto Alegre, Artes Médicas, 1985.
_______ Sobre o Poder Pessoal, 2ª. ed. São Paulo, Martins Fontes,1986.
_______ Um Jeito de Ser, São Paulo, EPU, 1983.

ROGERS, Carl R. & ROSENBERG, Rachel L., A Pessoa Como Centro, São Paulo,EPU, 1977.
ROGERS, Carl et alli – Em Busca de Vida. São Paulo, Summus Editorial, 1983.

Para que serve psicoterapia?

Georges Daniel Janja Bloc Boris

*Publicado no site da Universidade de Fortaleza (www.unifor.br) em 2001.

Como psicólogo, é comum que eu ouça comentários diversos sobre minha atuação profissional. [Mais...] Muitos consideram difícil ou muito pesada a postura de ouvir pessoas com dificuldades, com problemas emocionais sérios ou mesmo que se consideram ou que são socialmente percebidas como loucas. Outros desconsideram a atuação do psicólogo, percebendo-a como o uso de um conjunto de atitudes e de conselhos através de um palavreado ingênuo ou inócuo, pois referente ao senso comum, e que pouco resolve ou modifica as angústias dos usuários dos serviços de psicologia. Creio que estas duas perspectivas dizem respeito ao imaginário que envolve a atuação do psicólogo, que, de um lado, considera-o um semideus ou um mago onipotente, ou, por outro lado, percebe-o como um charlatão que utiliza seu saber para acomodar as ansiedades vividas pela clientela que o procura.

Acredito que a atuação do psicólogo clínico não se reduz nem a um nem a outro dos extremos referidos acima. Sem dúvida, não é uma panacéia para todos os males e nem resolve ou se propõe a resolver todos os problemas. Entretanto, devo afirmar que a psicoterapia – atividade que exerço há quase 20 anos – pode ser um recurso extremamente útil àqueles que buscam se conhecer mais profundamente e/ou que reconhecem sua insatisfação com a forma de estar no mundo. Sem dúvida, os problemas humanos são diversos. Entretanto, a psicoterapia visa a criar um clima receptivo e de confiança que favoreça a livre expressão das emoções, angústias e dificuldades vividas por aqueles que a ela se submetem.

Apesar de “fazer análise” ter se tornado uma prática prototípica da (pós)-modernidade, a psicoterapia tem mais de 100 anos e desenvolveu diversas abordagens, linhas teóricas e práticas diferenciadas. De um modo geral, trata-se de encontros de cerca de 50 minutos, em uma ou mais vezes na semana, em que o psicoterapeuta busca favorecer com que seu cliente manifeste suas questões pessoais íntimas e tudo aquilo que lhe diz respeito ao último pode e deve ser tratado no espaço psicoterápico. As técnicas e os referenciais são muitos, mas, genericamente, buscam que aqueles que se beneficiam da psicoterapia aprendam a lidar melhor com suas questões e possam tomar decisões mais conscientes e consistentes com seus próprios desejos. Comumente, não há um tempo pré-definido para o término do processo psicoterápico, apesar de algumas abordagens de psicoterapia breve determinarem o número de sessões em que se espera alcançar seu objetivo. Em vários referenciais, não há cura, pois se considera que geralmente não há doença a tratar e que a decisão de se submeter ou de encerrar o processo psicoterápico depende em grande parte ou totalmente do cliente. Neste sentido, a psicoterapia não seria nem mesmo um tratamento.

As psicoterapias lidam com as mais variadas questões, envolvendo aspectos práticos e objetivos ou subjetivos e abstratos da vida dos clientes. Algumas privilegiam o uso da palavra; outras, a expressão emocional através do corpo; a aprendizagem de novos comportamentos ou a dramatização de situações significativas da vida da clientela. Em sua formação, os psicoterapeutas se submeteram a seus próprios processos psicoterápicos como clientes e freqüentemente buscam profissionais mais experientes para discutir seus casos clínicos ou pelo menos aqueles em que enfrentam maior dificuldade. Neste caso, a identidade do cliente é preservada e os objetos da supervisão passam a ser o próprio psicoterapeuta e suas dificuldades.

A prática psicoterápica buscou favorecer também porções mais amplas da população, surgindo as práticas grupais. Devido ao maior número de participantes, os grupos geralmente funcionam num período de 2 a 4 horas semanais e requerem um contrato de sigilo não apenas com o psicoterapeuta – como ocorre nos processos individuais – mas com todos os participantes. Busca-se que haja participantes de ambos os sexos e de idades variadas – ou mesmo de classes diferentes – de modo a que o grupo vivencie situações as mais próximas da realidade social. Geralmente, o período de existência dos grupos é acertado previamente com os participantes, podendo variar de grupos de fins de semana até grupos que duram anos. O número de participantes também varia bastante, mas o mais comum é o chamado pequeno grupo, composto de 8 a 12 participantes. Uma qualidade interessante e peculiar – pelo menos potencialmente – aos grupos de psicoterapia é que os vários participantes leigos vão paulatinamente se tornando agentes ou facilitadores terapêuticos cooperativos e o psicoterapeuta vai assumindo cada vez mais apenas a função de coordenador mais experiente, a quem o grupo pode recorrer nos momentos mais difíceis.

Longe de se propor apenas a tratar de pessoas insanas ou perturbadas mentalmente, as psicoterapias podem mesmo funcionar como um recurso às pessoas “normais”, mas que percebem que seu potencial existencial poderia ser mais bem explorado e vivido. Neste sentido, a psicoterapia pode se constituir num instrumento de facilitação da aprendizagem, do reconhecimento pessoal e interpessoal, da conscientização e da realização das potencialidades humanas.