Textos

Atendimento psicoterapêutico: remunerado ou não? Algumas considerações.

Maria Eufrásia de Faria Bremberger

Mestre em Psicologia – PUC-Campinas-2009

Docente do curso de psicologia da Anhanguera Educacional S/A

Psicoterapeuta com consultório particular em parceria com clínica odontológica.

E-mail: brembergerfb@ig.com.br

  

RESUMO

 As cobranças das sessões terapêuticas tem sido um assunto pouco explorado na literatura científica brasileira, e também não tem sido objeto de discussão nos cursos de graduação de psicologia. Parece que tal questão acaba sendo negligenciada por essas instâncias, como um assunto menor. Fica a cargo dos Conselhos Regionais de Psicologia, por meio das tabelas de honorários de referência, cujas orientações são meramente informativas. As dificuldades em lidar com esses assuntos e os dilemas envolvidos podem estar em grande parte, relacionadas com a própria concepção que os profissionais têm do conhecimento científico psicológico, da identidade profissional, da natureza e objeto da sua prática. Os questionamentos acerca dos pagamentos das sessões psicoterapêuticas foram temas recorrentes nos encontros bimestrais realizados num Programa de Atendimento Psicológico a uma comunidade num bairro popular, de caráter social/voluntário, onde o grupo de psicólogos colaboradores do programa, é orientado à cobrança de quantias simbólicas dos clientes. Assim, esse texto tece algumas considerações acerca da relação do trabalho do psicólogo, na condição de psicoterapeuta, com a questão do dinheiro e as cobranças das sessões terapêuticas.Busca esclarecer os dilemas presentes nessa situação, provocados geralmente,  pelo estigma de que ajudar o outro é um ato de doação como se benemerência fosse e atribuindo um caráter mercenário àqueles que igualmente se doam, profissionalmente, e daí cobram por essa ajuda. Discute-se também quão confusas e comprometedoras são as práticas cidadãs e caritativas do psicólogo  misturadas às do seu ofício, cujas implicações podem levar à  uma construção de desvalia e empobrecimento da profissão.

PALAVRAS-CHAVE: Dinheiro; Atendimento Psicológico; Abordagem Centrada na Pessoa

 

(Resumo Expandido)

 

INTRODUÇÃO

Colocarei aqui algumas observações, a respeito da gratuidade ou não, do atendimento psicoterapêutico, pelo profissional psicólogo, a partir das leituras que tenho realizado e dos debates promovidos num Programa de Atendimento Psicológico a uma comunidade de bairro popular, somado às minhas vivências, como profissional da área.

As questões que nortearam esse estudo partiram dos seguintes indagações: Por quê o manuseio dos honorários e pagamento no inicio da prática clínica ou em outras circunstâncias são tão cheios de conflitos?  Devemos cobrar as sessões terapêuticas ou não? Há situações distintas em que os atendimentos devem ou não ser cobrados?   A ajuda psicológica a uma pessoa deve estar atrelada à possibilidade de pagamento? Há alguma diferença entre ajuda psicológica e ajuda cidadã? Quem se beneficia de atendimentos psicoterapêuticos gratuitos?  Quais as implicações oriundas de serviços psicológicos oferecidos gratuitamente, quer seja: para o processo terapêutico, para o cliente, para o terapeuta e para as associações de classe?  Em que medida há crescimento psicológico quando os atendimentos são gratuitos ou não? 

Face a esse conjunto de questionamentos que mobilizam esse texto,  buscarei tecer algumas considerações acerca do problema  cuja literatura é escassa no debate desse tema. A maior parte das publicações existentes possui mais de vinte anos e é internacional, apontam Gross & Teodoro (2009).

Durante um levantamento bibliográfico, para subsidiar essa discussão, constatei que há estudos acerca do tema dinheiro no setting terapêutico. No entanto, o tema é tratado a partir de aspectos clínicos, ou seja, na maioria das vezes estão inseridos e sendo discutidos como conteúdo do próprio processo terapêutico e crescimento psicológico, à luz dos conceitos da abordagem psicanalítica. Considero primordial um debate dessa natureza, mas há de se discutir também tal assunto pela perspectiva da própria prática profissional do psicoterapeuta, ou seja, no âmbito científico, estrutural, social e profissional da atividade ocupacional, uma que vez que tais componentes tendem a afetar o próprio desenvolvimento do trabalho terapêutico como também o profissional que o executa.

Inicialmente acredito ser necessária uma discussão conceitual do que é psicologia enquanto ciência, seu objeto de estudo, as profissões, o papel do psicólogo e sua atividade profissional. Faz-se necessário esse resgate científico e histórico para dar corpo às postulações e para o desenvolvimento desse discurso, incorporando também experiências e o diálogo com outros campos profissionais, os quais se deparam com problemas semelhantes aos da nossa área. Com essas construções terei mais subsídios para me posicionar face ao  tema em questão.

PSICOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA

Considero inicialmente que todos os profissionais, quer sejam da área de exatas ou da área de humanas, se ocupam de um objeto de estudo específico sobre o homem e consequentemente, de uma intervenção sobre esse objeto investigado.

Em se tratando da área de humanas, representada por algumas das disciplinas tais como: antropologia, história, sociologia, ciências políticas, comunicação, educação, lingüística, literatura, pedagogia, psicologia, teologia, entre outras, elas  tratam de determinados aspectos do homem como indivíduo e como ser social. Estas disciplinas subjacentes a um arcabouço, denominado CIÊNCIA, por sua vez, estão assentadas em uma base de saberes tanto científicos quanto filosóficos.

A psicologia, enquanto ciência é de domínio público assim como os demais campos de conhecimento. Contudo, a psicologia, quando no exercício da profissão, exige outros procedimentos social-acadêmicos, logo, não há de se questionar que a prática profissional oriunda de qualquer um desses campos do conhecimento a ser desenvolvido na esfera institucional-social, requer um processo de formação acadêmica.

Isso posto, entendo que o exercício da psicologia, ou seja, a atuação do psicólogo se caracteriza como uma “ocupação” um “ofício”. Uma atividade que se pode disponibilizar para a sociedade como uma mão-de-obra remunerada, já que estamos inseridos em uma economia de mercado. Portanto, considero senso comum a todos os profissionais da psicologia, a cobrança de suas atividades.

Assim sendo, se a psicologia, enquanto ciência e profissão, é legítima e socialmente reconhecida, uma vez sendo profissional da psicologia, posso cobrar os atendimentos até porque é um direito adquirido constitucionalmente. Vivendo em um país democrático, o que nós não podemos, é nos furtarmos aos nossos deveres, mas, entendo que nos reservarmos o direito de atender gratuitamente os clientes a titulo de voluntarismo, benemerência ou até mesmo cidadania. Afinal vivemos numa era em que se preconiza o bem estar coletivo, a ação voluntária, o exercício da cidadania.

Considero legítima e nobre a intenção da prática voluntária ou cidadã, contudo, há que se ser cauteloso diante dessa postura, haja vista que o psicólogo está inserido numa categoria de classe, logo, qualquer que seja a sua atuação como profissional repercutirá junto à categoria a qual pertence, e os efeitos do seus atos afetarão direta ou indiretamente seus colegas de profissão. Qualquer fazer de um indivíduo, revestido do papel social da sua profissão trará implicações em maior ou menor grau à sua classe profissional e a ela deve responder.

Se existe o desejo de praticar uma atuação cidadã ou voluntária ela pode e deve ser posta em prática de várias maneiras e espaços sociais quais sejam, hospitais, creches, asilos, comunidades carentes e outras. Pode ainda contar com todos os conhecimentos e habilidades que a pessoa possua, além dos profissionais, ou seja, saberes de culinária, de artesanato, de música, de administradora, de contadora de histórias, entre outras. É uma atitude que se parte de uma necessidade pessoal rumo a um ato cidadão. Logo, se caracteriza como um desejo íntimo e pode ser posto em prática, obviamente, independente da sua profissão ou não.

Agora, uma vez a atividade ocupacional inserida em um espaço institucional-social da profissão e a ação benemerente está sendo operacionalizado às custas de sua posição como profissional da psicologia, pode ser entendida como assistencialismo, tal como aconteceu com o Serviço Social, cuja trajetória histórica como política e profissão acabou criando uma imagem deturpada da sua atividade profissional. Atualmente tem travado uma luta amarga para superar esse olhar corrompido da sua prática, menciona Costa (2004).

Diante disso, há de se notar o quão perigoso são essas atitudes pautadas num intencionalismo acrítico, imediato, individualista aliado à falta de conhecimento, podendo de certa maneira estar fornecendo elementos que empobreça e banalize a imagem da profissão.

Além disso, pode-se inferir que durante a graduação o profissional não estudou com afinco ou não fez os estágios com profissionalismo e agora ele se vê diante da necessidade de se atualizar. Outrossim, pode ser resultado da necessidade de retro alimentar a identidade social da profissão para qual se formou, para aplacar seu ego como também responder e satisfazer as expectativas da família e do seu entorno.  Nota-se aí que pode estar até mesmo havendo uma postura antiética de forma implícita do recém-formado ou profissional sob o escudo de voluntarismo ou cidadania.

E ainda, pode estar presente a falta de clareza do que é a profissão e suas especificidades, resultantes de uma ausência conceitual e acadêmica da ocupação, derivada de uma ciência com o voluntariado. Contudo, ressalto que defendo a prática do voluntarismo mas há de se ter claro uma ação cidadã via pessoa da ação mediada pela profissão.

 

 

PROFISSÃO DA ÁREA DE HUMANAS E A NATUREZA DA SUA ATIVIDADE: O CUIDAR

Mas afinal, porquê pode estar havendo essa confusão da prática da profissão do psicólogo com práticas caritativas e beneméritas?

O profissional da área de humanas, ao contrário do profissional da área de exatas, é o agente que lida com determinados aspectos da dimensão humana. Assim ele pode ser tomado como um cuidador de certas questões humanas do homem, como por exemplo: o professor cuida da educação de seus alunos, o médico cuida da saúde física do seu paciente, o padre cuida da saúde espiritual do homem, o assistente social cuida da saúde social-cidadã das pessoas e o psicólogo cuida do sofrimento do seu cliente com vistas à sua saúde psicológica. Em suma, todos esses profissionais têm como objeto conceitual comum e mediador da sua profissão: o cuidar do outro.

Para essa questão acerca do cuidar é essencial recorrer à área da enfermagem, pois até então, em termos teóricos, empíricos e profissionais, esse campo tem oferecido um corpo de conhecimento substancial para a leitura desse conceito, já que é “arte de cuidar”, é o eixo norteador da profissão e das práticas da área da enfermagem, menciona Veríssimo (2001).

A autora, adotando os princípios de rogerianos, concebe o cuidado como um componente atitudinal, que envolve atributos, ações, qualidades, conhecimentos, valores, habilidades e atitude para assistir o outro. É fortemente marcado pelo âmbito relacional e, menciona ainda, que o cuidado não está ligado necessariamente à sensibilidade e sim ao conhecimento, mas, que por sua vez, o brotar da sensibilidade é despertado pela esteira do conhecimento. Cuidar de outra pessoa no sentido mais significativo é ajudá-lo a crescer e a realizar-se, para tanto, é imprescindível o conhecimento, pois é o conhecimento que ajuda a pessoa a cuidar do outro empaticamente.

Diante disso, pergunta-se então: Em que medida o psicólogo, na condição de profissional, ao atender um cliente gratuitamente efetivamente o está fazendo crescer?  Não está se constituindo aí uma relação hierárquica, desigual, assentada no autocompadecimento? Não preconizam os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa, que o terapeuta deve caminhar ao lado do seu cliente na busca de sua potencialidade, então, diante dessa relação assimétrica, não estaria contrariando os princípios científicos da psicoterapia?  Do que está revestido o profissional psicólogo ao atender uma pessoa nessas condições: de benemerência, de sensibilidade ou de conhecimento?  É possível promover a saúde psicológica ou a autonomia de um cliente se, ao atendê-lo gratuitamente, já estará de certa forma implícito um olhar de descrença de sua potencialidade e na capacidade de responder aos desafios da vida?

Em síntese, se resgatarmos a essência do processo psicoterapêutico, segundo os princípios humanistas, que se baseia na atitude do psicoterapeuta, como um agente facilitador, mobilizador da potencialidade do cliente rumo ao seu funcionamento pleno, de torná-lo ator e autor de sua própria história, essa relação de atendimento gratuito já contém elementos que contradizem esses princípios pois toma o cliente como não capaz de decidir, de escolher, de assumir o próprio rumo, haja vista que o terapeuta já decidiu por ele na medida em que se constituiu uma relação que não o valoriza.

Retomando as idéias postuladas por Veríssimo (2001), há de se ter claro um cuidado do senso comum de um cuidado profissional. O cuidar ou as práticas de cuidado dentro de um espaço socialmente-institucionalizado deve ser tomado no âmbito “profissional” ou “ofício” do cuidar, descolando dessa forma do caráter benemérito caritativo do cuidar. Essa atitude deve ser observada com cautela pelo profissional psicólogo no ato de sua prática, se o faz como profissional ou como caridade de natureza pessoal ou outros interesses.

O cuidar do outro enquanto “ofício” demanda ações segundo os princípios do código de ética e outras resoluções e regulamentos da sua profissão tal como compromisso, envolvimento, competência e conhecimento. Enquanto que o cuidar, enquanto ato cidadão, dispõe apenas de uma doação do outro, no âmbito da afetividade, caridade, regidas no esteio da filantropia e no exercício da cidadania.

Para dar clareza a essas diferentes modalidades do cuidar recorrei de forma análoga a um exemplo empírico oriundo do campo do humor. Pergunta-se porque os nordestinos de certa maneira são grandes humoristas e contadores de piada se os lugares em que vivem nada tendem a inspirá-los para tal.  Tom Cavalcante, humorista brasileiro e apresentador de programas na TV, respondeu em seu programa que o humor para os nordestinos se caracteriza como um “ofício”, uma “profissão”. Uma habilidade que eles praticam desde a tenra idade.

As fronteiras do cuidar institucional e do cuidar doméstico-familiar devem ser conceitualmente bem nítidas, assim como o que se aplica ao psicólogo cuja ação última busca cuidar da saúde psicológica do seu cliente diferenciado do cuidar cidadão, embora tais instâncias se complementem e se interpenetram. São cuidados cujo ato final visa promover o bem-estar do outro, mas que passa por caminhos diferentes cujas especificidades devem ser claramente compreendidas e respeitadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo, defendo veemente a prática voluntária e cidadã contando até mesmo com as habilidades profissionais que a pessoa tenha, mas, há de se ponderar as devidas especificidades e limites de cada ato. Por outro lado, me posiciono contrário à postura do profissional psicólogo praticar clínica gratuitamente, dentro de um modelo sistemático e contínuo de atendimento ou em espaços socialmente constituídos da profissão tal como consultório ou sua extensão. Considero que tais iniciativas levam ao empobrecimento e banalização da profissão conforme exposto, e ainda oculta, na minha concepção, uma deficiência seja no âmbito, pessoal, social ou intelectual, do profissional praticante.

Advogo sim por uma cobrança em relação à prestação desse serviço, contudo o valor a ser cobrado, a forma e as condições de pagamento ou até mesmo o elemento que pode servir como moeda de pagamento são questões que lanço para futuras indagações e para os colegas discutirem, pois, isso a depender de novos olhares e novas postulações.

REFERENCIAS

 

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Tabela Referencial de Honorários. Disponível em: < www.crpsp.org.br/crp/orientacao/tabela.aspx>.   Acesso em: julho/2010

COSTA, Selma Frossard. A política de Assistência Social no contexto da educação infantil: Possibilidades e desafios para um trabalho sócio-educativo. 2004. Disponível em: http://www.ssrevista.uel.br/c_v6n2_selma.htm>. Acesso em: maio/2008.

GROSS, Camile. & TEODORO, Maycolm L. M.  A cobrança dos honorários na prática clínica por psicoterapeutas: uma revisão de literatura. Aletheia, n. 20. Canoas, junho 2009. Disponível em < http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000100010>.   Acesso em março/2010         

 

GROSS, Camile. & TEODORO, Maycolm L. M. A cobrança dos honorários na prática clínica.  Psicologia Clínica, vol.21, n.2. Rio de Janeiro,  2009. Disponível em <

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652009000200005>.Acesso em março/2010         

 

ROGERS. Carl R. A questão de haver um pagamento afeta a consulta psicológica? In: ROGERS, Carl R. Psicoterapia e consulta psicológica. São Paulo: Martins Fontes, 2005 p. 248-250.

 

_________. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1982

VERÍSSIMO, M.L.R. O olhar de trabalhadores de creches sobre o cuidado da criança. Tese de Doutorado da Escola de Enfermagem – USP-SP, 2001

Compartilhe!
  • Print
  • del.icio.us
  • Facebook
  • Google Bookmarks
  • email
  • LinkedIn
  • RSS
  • Twitter


No comments yet.

Leave a Reply

You must be logged in to post a comment.